10.10.08

Capítulo 35

Hoje estava capaz de me ir embora: pegar nas chaves do carro sem motivo nenhum

(as chaves estão sempre no prato da entrada)

descer as escadas

(não descer pelo elevador, descer as escadas)

até à garagem da cave, ver o fecho eléctrico abrir-se com dois estalos e dois sinais de luzes, ver a porta automática subir devagarinho e logo na rua acelerar o mais possível, queimando semáforos, na direcção da auto-estrada, sem ligar aos painéis que indicam as cidades e a distância em quilómetros, sem uma ideia na cabeça, sem destino, sem mais nada para além da pressa de ir-me embora, colocar entre mim e mim o maior espaço possível, esquecer-me do meu nome, dos nomes dos meus amigos, da minha família, do diário que deixei não sei onde no Estoril e me persegue. Parar num desses restaurantes das bombas de gasolina à beira das portagens e comer sem olhar para ninguém, sem reparar em ninguém nem sequer nas crianças que correm entre as mesas e acelerar de novo segurando o volante com força tal como em pequena segurava o guiador da bicicleta enquanto o meu pai

ou a minha mãe?

julgo que o meu pai, corria ao meu lado ensinando-me a pedalar

Hoje estava capaz de me ir embora: as paredes da casa apertam-me, tudo me parece tão pequeno, tão inútil, tão estranho. Entrar na cozinha. Fazer o almoço. Servi-lo. Esperar pela refeição seguinte. Apagar o fogão. Servi-la. Atender a meio da tarde a voz do meu marido a saber como estou, receber as cartas da Ana de que não compreendo o endereço. Abandonar os telefonemas e as cartas também. Hoje estou mesmo capaz de me ir embora antes que fique louca como os cães, correndo em círculos na noite. Se chegar à janela verifico que o frio humedeceu de orvalho as tampas dos caixotes do lixo e apenas uma janela acesa num prédio lá em baixo. Dir-se-ia que mais ninguém senão eu continua viva. Eu e o telefone que apesar de calado parece prestes a romper aos gritos. As minhas costelas respiram contra o vidro. No parque de estacionamento em frente à casa um pombo morto. Ou uma gaivota. Um bicho qualquer. As tampas dos caixotes de lixo reflectem os candeeiros em nódoas coalhadas e fixas. Faço-me uma careta nos caixilhos.

(...)

Hoje estava capaz de me ir embora. Sem espalhafato, sem conversas, sem explicações, sem essa espiadela de passagem a verificar se o cabelo está certo. Há muitos anos, em Tomar, conheci uma senhora de idade, amiga da minha avó, que estava a morrer. A certa altura perguntou-me

- Não me achas um bocadinho cansada Maria Clara?

e na manhã seguinte vieram os homens da agência e colocaram-na no caixão. A filha disse-me que depois da pergunta

- Não me achas um bocadinho cansada Maria Clara?

a senhora de idade pediu um dedo de Madeira às escondidas da gente. Metade derramou-se no pescoço mas a metade que engoliu animou-a. Era viúva há que tempos e não esperava grande coisa de ninguém. Se um dia voltar a Tomar

(nunca voltarei a Tomar)

levo-lhe uma garrafa de Madeira à sepultura e deixo-lha sobre o mármore, no meio das jarrinhas de flores. Aproximo-me da janela e lá estão as tampas dos caixotes do lixo húmidas de orvalho. As árvores do parque serenaram por fim. Ligo a televisão. Não entendo o que se passa no ecrã mas continuo a ver. Uma menina sorri-me do aparelho. Infelizmente o sorriso dura pouco tempo. Se calhar nem sequer um sorriso. Se calhar sou apenas eu que preciso de um sorriso. Há momentos na vida em que necessitamos tanto de um sorriso. À falta de melhor toco-me com o dedo no vidro.

António Lobo Antunes - Não entres tão depressa nessa noite escura

0 pessoas com insónias:

Template by:
Free Blog Templates